A carne de lata não é só história, técnica, economia e tradição. É uma iguaria para os mais refinados paladares e o reconhecimento de um jeito antigo de cozinhar.
A carne de lata é um tipo de carne produzida através de um processo de conservação de alimentos, similar ao “confit” – nome que vem do francês e significa “cristalizado”, bastante apropriado para a aparência que os alimentos ficam, envoltos na gordura, uma espécie de película brilhante. Ou seja, carne cozida na própria gordura. Comumente produzida no interior brasileiro, principalmente nos estados de Minas Gerais e de São Paulo para o armazenamento de carne de porco. A carne de lata, no Brasil, vem do porco.
Neste processo a carne é cozida ou frita lentamente em sua própria gordura e em seguida armazenada em uma lata, vem daí a origem do seu nome, onde é coberta pela própria gordura quente, retirando assim grande parte da água e umidade do preparo, podendo conservar o alimento por até cerca de um ano se armazenado em temperatura ambiente e longe de umidade excessiva. Este processo foi muito utilizado no interior brasileiro até meados do século XX antes da popularização dos refrigeradores no Brasil, porém está voltando com força total para os preparos rápidos de pratos pré-prontos com muito sabor e textura diferenciada!
No Brasil a técnica e o hábito do consumo da carne na banha se difundiram com a chegada dos colonizadores europeus que, além de gerarem maior demanda por alimentos que pudessem ser transportados e conservados trouxeram, também, os primeiros suínos para o país. Porém, é possível remeter a técnica de conservação da carne em gordura também a um alimento de raízes indígenas, a mixira, tradicional em algumas partes da região amazônica.
A mixira é uma conserva de carne de peixe-boi (ou também de pequenas tartarugas, tambaquis e outros peixes) na sua própria gordura. O termo vem do tupi michira que significa assar, fritar ou na forma de substantivo, assadura, a coisa assada. Uma combinação que resulta em “aquilo que eu frito”.
A carne e a gordura do peixe-boi já eram bastante consumidos, como informa o jesuíta Fernão Cardim, em meados de 1580. O animal era ainda abundante no Brasil quando os colonizadores começaram a ocupar as áreas costeiras e interioranas da Amazônia, mesmo tendo feito parte da alimentação de populações nativas há milênios.
O português rapidamente adotou e adaptou o hábito de consumo do peixe-boi, acrescentando o uso do sal e a variante do embutido na forma de linguiça: usando-se as vísceras, carne e gordura do próprio animal, além de temperos como limão ou vinagre, pau-cravo e pimenta, faziam-se linguiças que eram fervidas e penduradas para secar, em seguida estocadas em camotins – vasos de cerâmica indígena – embebidas na “manteiga das banhas”.
A mixira, na sua versão de conserva na gordura, foi exportada como iguaria para a Europa já no século XVII e movimentou uma verdadeira indústria até o início do século XX, levando o peixe-boi ao limiar da extinção, com o uso intensivo da sua carne, couro e “manteiga”. Ainda hoje, a mixira é uma forma de conservação valiosa e tradicionalmente usada por parte das populações ribeirinhas da Amazônia, notadamente aquelas que não dispõem de energia elétrica.
“Mixira” de porco
Os suínos já faziam parte do cotidiano e do cardápio brasileiro no final do século XVI. O navegador Martim Afonso de Souza trouxe os primeiros porcos para o litoral paulista, em 1532. Alguns anos mais tarde, o então governador-geral do Brasil Tomé de Souza, chegou à Bahia com um navio repleto de animais domésticos, entre eles, provavelmente, o porco. Em pouco tempo, já haviam suínos sendo criados (e cozinhados e consumidos) em terras paulistas, baianas e em Minas Gerais.
Os animais eram criados inicialmente de forma extensiva, em seguida em chiqueiros rudimentares nas roças familiares ou amarrados em cordas nos quintais. Frequentemente escapavam pelas matas, formando grupos independentes, se misturando com a fauna nativa.
Durante o período da mineração entre os séculos XVII e XVIII, a carne de porco representava a principal fonte de proteína da população de Minas Gerais; era mais acessível, extremamente mais barata e de melhor qualidade em comparação à carne de vaca (CAVALCANTI, 2007). Se tornou um alimento chave na alimentação de tropeiros, mineradores, escravos, trabalhadores e senhores da terra, além de representar uma atividade lucrativa para vários fazendeiros na região.
Assim, a preparação da carne na banha tornou-se um hábito culinário muito comum no interior mineiro e na região do Vale do Paraíba, em São Paulo. Estava presente também nas regiões produtoras de porco, como o Paraná e Rio Grande do Sul. Nos vilarejos que serviam como pouso ou rota de tropeiros, a técnica era bastante difusa e praticamente toda roça, chácara, sítio ou fazenda tinha um chiqueiro para porcos no quintal.
A “lata” de carne na banha permanece guardada na cozinha e, à medida da necessidade, retiram-se porções da gordura solidificada para cozinhar, para fritar, refogar, fazer massas, doces, etc.
Por ser um processo extremamente trabalhoso, envolvendo grandes quantidades de alimento (com animais que ultrapassavam duzentos quilos), que precisavam ser processados rapidamente para não estragarem, o dia de matar o porco e preparar as carnes era um evento que envolvia a família e membros da vizinhança.
Os homens se organizavam nas atividades de abate e separação dos diferentes cortes, as mulheres ficavam à frente dos fogões improvisados fora das cozinhas, selecionando os pedaços para cada tipo de preparo da carne. Naturalmente, tudo terminava com comida, vinho e cachaça compartilhados entre todos, e cada vizinho que ajudava na tarefa levava para casa uma porção do resultado.
Atualmente muitos restaurantes, principalmente os de grifes, estão utilizando esse saber antigo para valorizar e ressignificar seus cardápios. Mas o que queremos mesmo neste espaço é valorizar a cultura brasileira e sua preservação. Afinal, a valorização da técnica de preparo da carne na lata é uma importante estratégia para manter viva a história, os ingredientes e a cultura alimentar de regiões influenciadas pela cultura caipira, como o interior de Minas Gerais, o Vale do Paraíba, em São Paulo e na região das romarias em Goiás.
Hoje, a carne de lata não é só história, técnica, economia e tradição. É uma iguaria para os mais refinados paladares, que transforma o sabor e a textura da carne de forma singular, e que nas mãos de hábeis cozinheiras e cozinheiros proporciona uma experiência gastronômica única.
O interesse renovado por esse alimento pode ser um impulso importante para o resgate de sabores mais genuínos e naturais, assim como de raças de animais e modos de criação menos intensivos e mais sustentáveis.
Dicas e receitas
A preparação da carne de lata começa com a separação da banha, derretendo o toucinho na panela e reservando o torresmo. A banha quente é reservada enquanto se procede com as outras etapas.
A carne pode ser marinada com temperos (geralmente, sal, alho, pimenta do reino) por algumas horas ou até um dia.
A carne precisa esfriar antes de ser mergulhada na gordura, até parar de soltar “o vaporzinho de água”. A gordura também já deve estar fria, mas ainda líquida e deve cobrir completamente a carne. Tampa-se com pano ou peneira fina, deixando o conteúdo ventilar, enquanto a gordura se solidifica e fica esbranquiçada. Só depois de totalmente frio, as latas podem ser vedadas.
O livro “O Cozinheiro Nacional”, escrito no final do século XIX, traz a receita da carne de lata no capítulo dedicado ao porco, denominando a preparação como “conserva de porco fresco à brasileira”:
“Corta-se a carne de porco em postas; põem-se de vinho d’alhü, durante vinte e quatro horas, e em seguida, põem-se em uma vasilha para cozer em pouca água, tendo-se o cuidado de virar os pedaços para que fiquem cozidos por igual; deixa-se reduzir a água, e, n’esta occasião, a gordura que fazia parte das postas, se derrete, e a carne toma uma côr conveniente; n’este estado tirão-se-lhe as postas, que se collocão em uma panella de pedra ou vasilha vidrada, despejando-se-lhes por cima a gordura derretida na qual se frigírão as postas, devendo ficar bem cobertas de gordura. Quando se quizer usar d’ellas, tirão-se as que se quer com um garfo de páo, tendo o cuidado de endireitar a gordura afim de que ella cubra os outros pedaços, que ficão. Quando se quizer servir d’ellas, frigem-se em gordura, e servem-se com alguns dos molhos indicados para carne”.
Para saber mais: Arca do Gosto – Minas Gerais