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Caruru

A comida tem um poder transformador. Reunir pessoas à mesa simboliza congregação e criação de elos. Na Bahia, o mês de setembro é especialmente marcado por este sentimento, de compartilhar e celebrar. É o mês do Caruru, uma receita que é um misto de comida e carinho, cultura e história. A culinária baiana é puro sincretismo cultural-gastronômico indígena, africano e português. O caruru faz parte dela, alimento repleto de significados e ancestralidade.

O caruru é oferecido nas comemorações do dia de São Cosme e Damião, no dia 27 de setembro, permeia todas as classes socioeconômicas e não tem limites religiosos. 

Comida de Santo

Segundo o livro “Cozinhando Histórias – Receitas, Histórias e Mitos de Pratos Afro-brasileiros”*, muitos dos pratos afro-baianos servidos hoje – principalmente em ocasiões festivas – e restaurantes, tiveram origem em fundamentos religiosos ligados ao candomblé.

São Cosme e Damião são santos católicos sincretizados com os gêmeos Ibejis do candomblé, aos quais se oferece caruru. Assim nasceu a tradição de todo mês de setembro se oferecer o “caruru completo”, um banquete no qual, além do caruru, são servidos vários outros pratos, incluindo: acarajé, abará, xinxim de frango, mulukun, vatapá, feijão de leite, arroz de ahauçá, milho branco, oguedê, farofa de azeite, pipoca e cana-de-açúcar em pedaços.

O Mito do Caruru

No mesmo livro, a pesquisadora e fotógrafa Josmara B. Fregoneze, a especialista em culinária afro-brasileira, Marlene Jesus da Costa e a griô Nancy Sousa, mais conhecida como Dona Cici, contam sobre o Mito do Caruru. Resumidamente: toda vez que Xangô ia comer o seu amalá (comida parecida com o caruru, mas que leva carne e pimenta), Exu Ijélú vinha e roubava a comida dele. Xangô ficava tão bravo que fazia a terra tremer, lançando raios para todos os lados. Eis que os gêmeos filhos de Xangô, os Ibejis, se ofereceram para resolver o problema.

Um deles propôs um desafio para Exu: uma disputa de dança na qual, se Exu parasse de dançar antes dele, nunca mais comeria a comida de seu pai Xangô. Exu, rei das danças, nem pensou duas vezes e aceitou. Exu não sabia que eles eram gêmeos e quando a dança começou, sempre que um dos gêmeos começava a cansar, o outro o substituía imediatamente, sem que Exu notasse. Os irmãos se revezavam tocando o Batá (instrumento percussivo africano).

Isso durou por muito tempo até que Exu caiu exausto e perdeu o desafio e nunca mais comeu o amalá de Xangô. Como recompensa, os Ibejis pediram que sempre que tivesse amalá, fizessem uma parte sem pimenta e sem carne para eles.

Cada alimento é para um Santo

Feira de São Joaquim. Calçada. Salvador Bahia. Foto: Amanda Oliveira.

Por este motivo, para quem tem fé, o caruru é uma oferenda chamado de “caruru de promessa” ou “caruru dos sete meninos”. Em memória do evento onde os Ibejis enganaram Exu, todos os anos, os Ibejis são homenageados com o caruru. O livro conta que todos os orixás participam desta festa e a comida de cada um também é servida.

O quiabo é de Xangô; o feijão preto e a pipoca de Omolú; a banana da terra frita de Oxumaré; o acarajé é de Iansã; o abará e mulukun de Oxum e o inhame cozido de Oxalá.

Neste caso, primeiro é servido para os santos, depois para os sete meninos, que comem juntos, com as mãos, e depois é servido para todos. Eles representam os Ibejis, Taiwo, Kehinde, Idhoú, Alabá, Talabí, Adoká e Adosú. Também conhecidos como Cosme, Damião, Doú, Alabá, Crispim, Crispiniano e Talabi.

Mas o que é Ibejis

Ibeji é a palavra Iorubá que quer dizer gêmeos – “Ibi” significa nascido e “eji”, dois. Dá-se o nome de Taiwo ao primeiro gêmeo e de Kehinde ao outro.

Ibeji são crianças que gostam de brincadeiras e doces, que trazem harmonia e felicidade ao ambiente em que se encontram. São filhos de divindades, Xangô e Iansã, sendo também cultuados como divindades. São sincretizados com São Cosme e Damião.

Não se confunda nas datas: dia de Cosme e Damião é 26 de setembro

Na Igreja Católica Apostólica Romana, a celebração de São Cosme e Damião é 26 de setembro. Já o dia em que acontecem a maioria das festas de caruru é 27 de setembro. Acredita-se que o sincretismo deve-se, apenas, por ambas as religiões celebrarem irmãos gêmeos.

Na religião católica, Cosme e Damião eram médicos e viveram na Ásia Menor. Sua santidade é atribuída pelo motivo de haverem exercido a medicina sem cobrar por isso, devotados à fé e feito milagres propiciados por suas orações. Morreram por volta do ano 300 d.C., vítimas de uma perseguição do imperador romano Deocleciano. São os padroeiros dos farmacêuticos, médicos e das faculdades de medicina.

Comida afetiva

Definitivamente, dar um caruru é dar afeto. Esta comida calorosa tem o intuito de partilhar, sendo um pedido de saúde, prosperidade e fartura. Dar caruru para muitos é atrair alegria e renovação.
Por este motivo, além de setembro, os baianos em especial têm a tradição de comemorar batizados e aniversários dando um caruru aos presentes. O desejo é que a alegria de criança sempre exista em você, e que esta felicidade permaneça em você o resto do ano.

Dia de Iansã e Santa Bárbara, também tem Caruru

Dia de Santa Bárbara. Pelourinho, Salvador, Bahia. Foto: Amanda Oliveira.

Todos os anos, no dia 4 de dezembro, em Salvador, é celebrada a Festa de Santa Bárbara e de Iansã. As ruas do Pelourinho são tomadas pela cor vermelha, usada na vestimenta dos devotos e também nas pétalas de flores que cobrem o chão por onde passa o cortejo. Quando a imagem da santa passa em frente à sede dos Filhos de Gandhy, são ofertados acarajés, a comida de Iansã.

Tudo começa bem cedo com uma missa campal no Largo do Pelourinho, de onde a imagem sai da Igreja de Nossa Senhora Rosário dos Pretos em procissão até o quartel do Corpo de Bombeiros da Barroquinha. E nessa festa não pode faltar caruru. Entre os mais tradicionais, estão o do Mercado Santa Bárbara e o do Mercado de São Miguel, com os Filhos de Omolú.

Tradição é tradição

Existem algumas tradições interessantes:

1- A receita é feita com quiabos bem cortadinhos. Diz a tradição que, quem encontra no prato um quiabo inteiro, deve oferecer um caruru no próximo ano.

2- O caruru tradicional é servido em nagés de barro, uma vasilha em cerâmica normalmente usada para comidas oferecidas aos orixás. Depois de comer, o nagé usado não pode servir outra pessoa.

3- Quem oferece o caruru deve cortar o primeiro quiabo e, depois de pronto, colocar a comida aos pés dos santos em vasilhas novas e fazer um pedido.

4- A galinha do xinxim não pode ser comprada morta. A pessoa que cozinha é quem deve cortar o bicho.

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